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Fala, Memória: O sobrado de Zé Filgueira

SOBRADO. *José Brasil Leite

Construído pelo comerciante mossoroense, Souza Nogueira, nos finais do Século XIX. No ramo de “secos e molhados” vendia aos que ali transitavam: pescadores, barcaceiros, salineiros e banhistas que freqüentavam a “Praia de Zé Filgueira”. O sobrado era um prédio de frente ao Rio Ivipanim, ao oeste do manguezal da barra, de duas águas, formato retangular (15 x 5,5), térreo e 1º andar, área total de 165m2. Construção de terra batida (barro), entre toras de carnaúbas e aroeiras. O soalho superior (dormitório) de tabuado de maçaranduba do Pará.

Por trás do sobrado existia um armazém (8 x 4m), com porta larga gravada no pórtico alto relevo, a data de 1886; atrás deste, uma janela arejando o salão. Localizado lateralmente a um terreno, final do muro da firma Hernave Engenharia. O terreno de trás deste, ia até o “Tabaco Ventoso”, final as Rua do Progresso, hoje Silvério Barreto, local das salinas artesanais de Manoel Bento e mais distante a de José de Menezes Brasil.

Com aquisição desses imóveis por Zé Filgueira, este dito armazém foi transformado na famosa “Escola de Dona Maroca Filgueira”, um marco educacional de várias gerações areia-branquenses, como foram Hercília e Laura Noronha, Júlia e Natinha Alves, e, mais atual, Albertino Maciel e Chiquita do Carmo.

Zé Filgueira, de tradicional família abolicionista mossoroense, trabalhou na firma F. Souto. Delegado de Polícia, industrial salineiro, agropecuarista com fazenda no distrito de Entrada (hoje São José), neste município.

A prole do casal Filgueira e Maroca era de sete filhos homens (um par de gêmeos) e uma mulher – Carmem. Os homens, a maioria, herdaram a sua descendência genética. Alvos, ruivos, vermelhos, esguios. A filha Carmem, a mãe. Todos eles educados, inteligentes. Telúricos pela paisagem marinha do rio vista do 1º andar; alumbrados pelos “crepúsculo cor de rosa” das tardes fagueiras, onde se “bebe todo ouro do sol e todo perfume do alvorecer”.

Alguns deles ficaram por aqui, outros em Natal. Todos com passagem ou pela Receita Federal ou Alfândega Federal, setor de fiscalização na área portuária. Zé Filgueira, estatura mediana, esguio, bem vestido, passeava a cavalo todas as tardes, garborosamente pelas ruas da cidade.

Se Dom Quixote tinha o “Cavalo Rocinante”, seus moinhos de ventos, seu Sancho Pança e sua Dulcinéia del Taboso…

… Zé Filgueira também tinha o seu cavalo “Ouro Preto”, moinho de vento (de sua salina), seu “Sancho Pança” – o prático João Inocêncio, e sua Dulcinéia, “Honorina – a flor da estrada”, amiga de ambos. Não resta a menor dúvida: Zé Filgueira era o Dom Quixote Areia-branquense…

Hoje, o sobrado não mais existe. Foi tombado literalmente depois de três tentativas pelo cabo de aço da lancha Natal, de Wilson Sons. Os ventos alísios do norte já não varrem mais a vetustez das paredes brancas, somente fragmentos do que existiu. Restando “dúvidas, dívidas e dativas” do que se foi, como diria o poeta: “na passagem silenciosa das alvarengas rumo ao Porto-Ilha, já não se vê o sobrado, nem a luz mortiça do candeeiro que o iluminava… o que poderia ter sido e não foi…”. Só restou o tempo secular das vicissitudes vividas, sentidas e amadas: silêncio, solidão e mistério…

… Fantasmas lendários dos que ali, cercanias, foram mortos e sepultados pelo surto da varíola nos anos de 1910 (*).

Foi informante desses fatos históricos o memorista Raimundo Nonato (Dãodinho).

(*) Segundo relatos oficiosos, foi nesta época que aqui aportou, vindo de Natal, o cientista médico sanitarista paulista, Osvaldo Cruz (1872-1917). Pioneiro no combate de moléstias tropicais – surto de varíola e peste bubônicas – em várias cidades portuárias… Organizando os batalhões de “mata mosquitos”.

(*) José Brasil Leite, Odontólogo, escritor, poeta.

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