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Fala, Memória: Em Lirismo, Othon Souza viaja no tempo na nave do saudosismo

CASA  DA RAMPA, ANOS 50  FOTO DO ARQUIVO DE ABNTÔNIO JOSÊ (NATAL) Surpreendido pela chuva torrencial em plena Rua da Frente, rapidamente procurei abrigo na Retífica do Sr. Geraldo Araújo, casado com a Sra. Dalvinha, prima de papai. Eram os últimos anos da década de 70. Dentro da oficina encontrei o Araújo, seu filho, meu amigo de adolescência e parceiro no jogo de xadrez.

Araújo sempre foi um brincalhão. Com sua mão grande e forte, arrancou os meus óculos “fundo-de-garrafa”, me deixando quase cego e incapacitado.

A sensação foi de total impotência. Como Sansão ficou, ao ter os cabelos cortados, a mando da traição de sua amada Dalila. Quem é míope sabe muito bem do que estou falando.

Semi-serrei os olhos para melhor enxergá-lo, com vontade de esmurrá-lo, de tanta raiva que fiquei, pois o mesmo insistia em não me entregar os óculos.

Eu não passava de um magricela, com corpo de faquir. Só ganhava na altura para ele. Contudo, não era tão estúpido assim. Calculei que, mesmo de óculos, não era páreo para o mesmo.

Depois de muita insistência, vendo ele a minha aflição, me devolveu, mas antes, passou graxa nas lentes.

Procurei a biqueira mais próxima e os limpei. Retornei à retífica, ainda chateado, tentando não demonstrar, afinal, não queria dar o gosto ao companheiro de malvadezas, já que ele tinha atingindo seu alvo.

Em frente à Retífica, víamos o belo Rio Ivipanim. Nele estava ancorado uma grande embarcação de madeira de Zeca de Celso, entregue à própria sorte. O barco ali agonizava, sem coração, sem tripulação, sem alma, e nenhum cuidado.

Com a morte do seu proprietário, esperava somente que as intempéries o conduzissem para o fundo do rio, sua derradeira morada. Fato consumado com o tempo.

Próximo a ele ficava a rampa. Enxerguei os passageiros que iam e vinham da Barra, do outro lado do rio. Passada a chuva, caminhei para o lugar mais próximo possível deles. Queria admirar de perto aquele espetáculo. Uns com semblantes alegres, outros tristes, carrancudos… Cada um levando sobre si a sua história de vida, seus sonhos, esperanças, e pensamentos mil.

Chamou-me atenção um senhor moreno, parrudo, chapéu de palha na cabeça, jeitão de vaqueiro, que ia fazer a travessia com uma vaca, como companheira de viagem.

Achei inusitada aquela cena. Nunca tinha visto uma vaca nadar, exceto na televisão e nos cinemas.

Completada a lotação da canoa, a vaca foi entrando sem medo no rio, tangida pelo canoeiro. O senhor de chapéu, dentro da canoa, puxou-a pela corda, e enlaçou-a no banco que estava sentado.

O barco foi se arrastando suave, lentamente, como num lamento infindo, carregado pela correnteza do rio e o assobiar triste dos ventos, naquele entardecer melancólico.

Havia algo de lírico no silêncio oculto da paisagem deslumbrante, e no morno entardecer, querendo expressar o mundo interior de quem estava atento a tudo e a todos.

Os raios do sol beijavam o rio, e o reflexo tênue desta paixão resvalava-se na vela branca triangular da frágil embarcação, enchendo os passageiros de esperança e emoldurando o contentamento do marulhar das ondas, que emitia um canto lírico, ao tocar nas embarcações e no cais.

Vi o barco desfilando majestoso pelo filete d’água, entrando numa passagem estreita entre os manguezais do outro lado, e sumindo do alcance da minha visão.

Cada um dos passageiros foi para sua lide. Os do lado de cá também.

Voltei feliz para casa, solfejando Jesus, alegria dos homens (J.S. Bach), e penetrando na dimensão das regiões sonoras.

Othon Souza, filho do prático Zé Antonio e de ”Belezinha”. Nascido em Natal, teve sua gênese em Areia Branca a partir dos últimos anos da década de 60, quando para cá se dirigia nas férias escolares. Graduou-se Engenheiro Agrônomo e pós-graduou-se mestre em agronomia, pela antiga ESAM, em 1996. Atualmente reside em Rio Branco capital do Acre.

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